Uma visão multidisciplinar das alterações alimentares na infância
Quando é que existe um problema?
Muitas famílias veem a hora da refeição como um desafio constante.
Por vezes é uma situação que é desvalorizada pelas crenças sociais erradas, tais como:
“quando entrar para a escola tem tempo de aprender a comer”;
“quando tiver fome, come”;
“passa com o tempo”;
Mas será?!
A maioria das vezes existe uma causa sensório-motora na base destas alterações e dificuldades alimentares. Estas caracterizam-se por aparente falta de interesse pelos alimentos; evitamento baseado nas características sensoriais dos alimentos tais como extrema sensibilidade ao aspeto, cor, cheiro, textura, temperatura ou paladar; preocupação sobre consequências aversivas da alimentação.
Podemos dizer que existe um problema de alimentação quando a criança não quer ou não consegue comer o suficiente, e alguns dos sinais de alterações poderão ser:
– Estados de sonolência, grande irritabilidade e agitação motora no momento da alimentação;
– Dificuldades na interação da criança com os cuidadores, nomeadamente, com compromisso na forma de comunicar fome/saciedade;
– Aumento do stress no horário das refeições em contexto familiar e social.
– Quando os cuidadores pensam em inúmeras maneiras de alimentar o seu filho em termos de variedade e quantidade.
– Quando a criança fica incomodada com a presença de novos alimentos (p.e. não abre a boca, chora, engasga-se, fica nauseada, força os vómitos, entre outros);
Porque é um problema?
Quando uma criança não come bem, ou não come o que é expectável, é uma dificuldade que influencia as dinâmicas familiares, escola e até situações sociais. Com a existência de dificuldades na alimentação, a saúde e o bem-estar da criança podem estar comprometidas, tanto a nível físico com défice no aporte nutricional, como psicossociais.
O que é que pode contribuir para as alterações alimentares?
Por vezes as alterações no desenvolvimento normal/esperado da alimentação surgem devido à presença de dificuldades físicas, sensoriais, estruturais e nas competências e experiências oferecidas pelo meio.
Posto isto, quando pensamos em alterações alimentares na infância do ponto de vista do neurodesenvolvimento é importante descartar a existem de causas orgânicas (p.e. doenças gastrointestinais, respiratórias), psiquiátricas (p.e. anorexia/bulimia) e sociais (p.e. falta de disponibilidade alimentar), para que a intervenção seja o mais especializada e adequada possível.
Quando estas questões são descartadas poderá existir uma causa associada ao neurodesenvolvimento, nomeadamente associadas ao processamento sensorial.
Antes de completar 7 anos, o cérebro é fundamentalmente uma máquina de processamento sensorial, o que significa que obtém informações diretamente das sensações. Assim, a resposta adaptativa é mais motora do que mental. A integração sensorial ocorre com movimento, fala e brincadeira e é a base para processos mais complexos. As funções sensório-motoras desenvolvem-se numa ordem natural, e todas as crianças seguem a mesma sequência básica, e aquelas que se desviam significativamente da sequência expectável são propícias a ter problemas noutros aspetos da vida, como na alimentação.
O processamento sensorial é a capacidade de registar, integrar e processar informação sensorial e tem uma interferência direta na alimentação. As dificuldades de modulação sensorial poderão levar a que a criança tenha uma reação atípica a um determinado estímulo sensorial (Hiporeatividade ou hiperreatividade), nomeadamente na aceitação dos alimentos novos ou com texturas e consistências diferenças.
Por outro lado, crianças que têm problemas para interpretar as informações sensoriais orais, planear e coordenar os movimentos necessários para comer, podem cuspir comida ou até comer muito rápido, o que muitas vezes leva a uma alimentação confusa e a um comportamento desajeitado durante as refeições.
Qual a necessidade de tantos profissionais?
Uma abordagem multidisciplinar em alterações alimentares na infância é fundamental para que haja uma visão holística sobre a criança e a família e para que seja encontrada uma resposta a longo prazo. Nesta equipa deverão fazer parte a família com o papel principal, o médico, o Terapeuta da Fala, o Terapeuta Ocupacional, o professor/educador, o nutricionista, o Psicólogo, assistentes sociais, entre outros.
Na equipa multidisciplinar podemos encontrar Pediatra, Gastroentrologista, Otorrinolaringologista, entre outros, para despiste das questões orgânicas e avaliação dos parâmetros fisiológicos adequados à idade da criança; o professor/educador por estar no meio onde a criança partilha as refeições com os pares, tem a sua avaliação/perspetiva sobre as dificuldades; o nutricionista, na seleção da dieta alimentar; o Terapeuta da fala responsável pela avaliação e intervenção nas alterações oromotoras (alteração na mastigação e na deglutição ou respiração oral), na capacitação dos cuidadores sobre o desenvolvimento sensório-motor oral adequado, no fornecimento de estratégias para uma alimentação segura e eficaz, e na identificação de barreiras que limitam o conforto e o desenvolvimento de competências alimentares da criança; o Terapeuta Ocupacional intervém ao nível da integração sensorial e regulação, da adaptação da ocupação, ambiente e rotinas associadas à alimentação, que estejam a influenciar o desempenho ocupacional da criança.
O QUE FAZER ✅ | QUE NÃO FAZER ❌ |
Procurar saber se existe algum problema orgânico (p.e. dor ou desconforto). As principais causas de recusa de novos alimentos estão associadas a problemas gastro-intestinais. | O modo como comunicamos com a criança no momento de refeição. No lugar de dizermos “Prova! É bom!”, dizer “este alimento cheira tão bem”, “queres agarrar?”, etc. Evitar os rótulos “o meu filho é tão difícil para comer”, “não comes nada” trocando por “o meu filho está a ser incrível ao conhecer este novo alimento”. |
Ter atenção à textura dos alimentos. A textura modifica a forma como percebemos o sabor dos alimentos, ou seja, mudar a textura dos alimentos pode facilitar ou prejudicar a aceitação da criança. | Não forçar, ameaçar ou obrigar a criança a comer, assim como não oferecer recompensas, estas atitudes reforçam a recusa alimentar e desgastam os cuidadores. Deixar que seja a criança a querer tocar ou comer. |
A exposição da criança aos alimentos é crucial. Dar oportunidades à criança para tocar, mexer e cheirar os vários alimentos. | Não deixar de oferecer alimentos, mesmo que em pequenas quantidades, quando inicialmente foram rejeitados. |
Criar momentos lúdicos com os alimentos, brincar fora da mesa de refeição (p.e. pintura com alimentos), sem pressão. | Evitar distrações (p.e. tablets), para que o foco da criança seja o momento de refeição em família. |
Envolver a criança na preparação das refeições (p.e. comprar e preparar os alimentos, colocá-los na mesa). |
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Comer os mesmos alimentos que a criança. |
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VAMOS CRIAR MEMÓRIAS POSITIVAS DO MOMENTO DA ALIMENTAÇÃO!
Deste modo, na presença de qualquer dificuldade na alimentação, na introdução de novos alimentos, deve sempre procurar uma equipa multidisciplinar para o ajudar a si e à sua criança.
Dra. Maria Assis – Terapeuta Ocupacional
Dra. Márcia Correia – Terapeuta da Fala
Referências bibliográficas
Goday, P. et al. (2019) “Pediatric Feeding Disorder – Consensus Definition and Conceptual Framework”, JORNAL OF PEDIATRIC GASTROENTEROLOGY AND NUTRITION. Vo 68, No 1. Jan., p. 124-129.
Guedes, Inês (2019) Identification of feeding problems in children aged 6 Months to 7 years: adaptation and psychometrics properties of the Portuguese Version of the Pediatric Eating Assessment Tool. Porto: Escola Superior de Saúde – Politécnico do Porto.
Junqueira, Patrícia (2016) Como ajudar seu filho a experimentar novos alimentos. Instituto de Desenvolvimento Infantil.
Overland, Lori (2011) A Sensory-Motor Approach to feeding. Available from www.asha.org/policy
Richmond, Megan-Lynette (2007) Breaking the Rules: Letting Go of Manners to Decrease a Child’s Feeding Aversions. Super Duper Publications. No 143.
SOS Aproach to Feeding: https://sosapproachtofeeding.com
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