É através do movimento que a criança aprende e adquire experiências, que, por conseguinte, se transformam em objetivos e finalidades (1). Citando Wallon (2), “o movimento é, antes de tudo, a única expressão e o primeiro instrumento do psiquismo”. Assim, o corpo permite a descoberta de sensações de prazer e bem-estar, fundamentais para que a criança evolua, desenvolvendo assim as suas competências (1).

É desta exploração que se desenvolvem áreas como a Motricidade Global, que engloba movimentos do corpo na sua totalidade (p.e., coordenação de braços, pés, e outras partes do corpo, necessárias para andar, correr, escalar, entre outros). Para isso, é necessário que haja a oportunidade de experienciar a ativação diária de grandes grupos musculares (i.e., braços, barriga, costas e pernas), pela variedade de movimentos e diversificação sensorial. Na mesma linha, segue-se a Motricidade Fina, que abrange movimentos com grupos musculares mais pequenos, envolvendo mãos e dedos em coordenação com os olhos, e que se desenvolve a partir da área anteriormente descrita, dada a necessidade de uma adequada estabilidade de ombros e de tronco para possibilitar o foco da concentração e energia da criança em tarefas mais precisas (3).

Além destes, os sentidos são muito importantes, focando-nos em dois principais: cinestesia/proprioceção, responsável por nos informar onde se situam as várias partes do nosso corpo sem ser necessário olhar para elas (4), que se desenvolve pela realização de atividades com movimento que permitam puxar e empurrar em interação com o ambiente (p.e., segurar em objetos pesados e deslocá-los para construir um castelo); e o sentido vestibular, que nos dá a perceção de onde o nosso corpo se situa no espaço, permitindo a deslocação pelo envolvimento de forma eficaz, com facilidade e controlo (5), e que se desenvolve através de atividades de movimento que desafiem a gravidade (p.e., brincadeiras de pernas para o ar no trepa-trepa ou rebolar por uma encosta abaixo).

Desta forma, o ambiente, bem como as pessoas que o integram, são fatores de grande influência para o desenvolvimento (1). Em modo de reflexão, poderemos então aferir que este se encontra dependente da qualidade dos aspetos acima mencionados.

Na sociedade atual, muitos são os dados que se referem à desvalorização do corpo, com perda da sua noção e do seu funcionamento (6).

No caso das crianças, as limitações impostas pelo quotidiano nas cidades, com restrições à brincadeira livre, quer pelo espaço (p.e., aumento do tráfego automóvel, construção civil em massa), quer pelo tempo (p.e., aumento de carga horária letiva, atividades extra-curriculares organizadas), diminuem as experiências motoras livres e situações informais de aprendizagem. Desta forma, “resta pouco tempo para uma criança se envolver em brincadeiras livres, espontâneas e ativas – o tipo de brincadeira que estimula os sentidos e que faz o coração bater mais rápido” (3).

Outro aspeto a mencionar é a superproteção, com a indução do medo que limita as experiências afetas à exploração do seu envolvimento, que poderá influenciar a aquisição de competências e dificultar o desenvolvimento psicomotor da criança em fases críticas. Isto terá ainda implicações na socialização com os pares, pela sua inibição e diminuição de oportunidades de interação (7).

Assim, cada vez mais estudos apontam para a diminuição das capacidades físicas das crianças, como a diminuição da força muscular, da resistência e reduzida coordenação motora que advêm das poucas experiências sensoriomotoras. Prova disso será a análise dos resultados obtidos nas Provas de Aferição nacionais no ano letivo de 2017/18, divulgados pelo Instituto de Avaliação Educativa (8), nos quais se observaram dificuldades evidentes na disciplina de Educação Física do 8º ano, com percentagens de cerca de 80% para tarefas da Ginástica e de 70% para Jogos Desportivos Coletivos.

Desta relação conflituosa com o ambiente envolvente, poderá advir angústia, dado que o nosso cérebro, para permanecer concentrado durante longos períodos de tempo, “pede” ao corpo que se movimente, como estratégia para se manter ativo. Segundo Aucouturier (9), esta angústia é observável a nível corporal, com crescente agitação motora, impulsividade do comportamento, e falta de atenção, com a consequente ausência de planificação da ação, bem como dificuldades na gestão de emoções, mais especificamente baixa tolerância à frustração, com descargas emocionais intensas. Tudo isto influencia ainda a disponibilidade da criança para o outro, limitando o seu investimento.

É então bastante comum um crescente número de queixas relativas aos comportamentos das crianças nos mais diversos contextos, p.e., “ela não consegue prestar atenção e está sempre a pedir para ir à casa de banho, enquanto fazemos as fichas da escola” ou “no meu tempo, não havia crianças tão irrequietas”.

Conhecer e percecionar o corpo permite a construção da identidade enquanto pessoa, tendo também em conta as suas relações interpessoais (6), sendo então suporte e veículo da expressão emocional pelo conjunto de memórias, gestos, posturas, desejos pessoais (10) (Maximiano, 2004). Nos adultos, é bastante notória a dificuldade na identificação de sentimentos, que gera a sua omissão e repressão para com os outros (6).

A influência do movimento para uma adequada construção do “Eu” é bastante evidente em estudos com pessoas com incapacidade física adquirida, dado que, independentemente da sua gravidade, influencia de forma significativa o percurso de vida, com alterações do significado personalizado das “noções de tempo, espaço e capacidade judicativa” (11). Desta forma, esta perda de capacidade expressa-se em carências de aspetos do próprio ego, com desestruturação dos relacionamentos em diversos níveis (11).

É ainda do conhecimento comum os benefícios do movimento e da prática de exercício físico regular. São várias as organizações no âmbito da saúde que alertam e sensibilizam para a importância do movimento, p.e., a Organização Mundial de Saúde, que recomenda que as pessoas que trabalham muito tempo sentadas se levantem com regularidade e se movimentem, para evitar problemas posturais, musculares e ósseos.

            Após a análise dos aspetos acima mencionados, i.e., da importância do movimento, tanto para o desenvolvimento das crianças, como para o bem-estar mental e físico das crianças e adultos, é essencial refletir sobre as consequências do seu condicionamento, devido à situação atual de isolamento social originada pela pandemia de COVID-19.

            Se a construção e o desenvolvimento da identidade advêm da exploração do ambiente e das relações com as pessoas que nele se integram, como nos sugerem os autores, o confinamento ao espaço de casa limita estas oportunidades motoras e de interação, podendo facilmente optar-se por atividades mais sedentárias e pelo corte de relações com o outro, sendo algo a contrariar.

            Sugere-se então a adaptação deste espaço para a realização de atividades de movimento, tendo em conta as necessidades motoras de cada um, i.e., bebés, crianças, adultos, e/ou idosos, evitando assim permanecer muito tempo na mesma posição. A alteração da disposição de móveis poderá ser uma estratégia para aumento do espaço disponível à atividade física. Tendo em conta a possibilidade de teletrabalho e/ou da realização de atividades escolares, será também pertinente a programação horária para este tipo de eventos. A realização de jogos tradicionais permitirá a partilha de valores familiares e, por conseguinte, uma maior união entre os seus elementos. A realização de atividades que promovam a exploração dos vários sentidos (i.e., visão, audição, olfato, paladar, tato, propriocetivo, e vestibular) poderá ser mais um mecanismo de interação com o outro através do corpo, que podem ser realizadas  através de objetos simples de casa, p.e., fazer um percurso com várias formas de deslocação (i.e., andar ou saltar por cima de almofadas, rastejar por baixo de cadeiras ou camas), colocar mantas e objetos dentro da roupa, explorar texturas pelo toque com diferentes partes do corpo e cheiros (p.e., colocar dentro de uma caixa terra, água, arroz, feijão, ervas aromáticas, flores, alfazema, cascas de citrinos).

Torna-se importante também compreender os sinais que o corpo transmite, tentando atribuir o seu devido valor. Devemos então refletir sobre a razão da alteração de comportamentos (i.e., agitação motora, instabilidade), quer em crianças, quer em adultos, dado que são formas de demonstração de preocupação e angústia internas. Ter noção das alterações corporais afetas a um problema emocional (p.e., aumento de tónus, aumento da frequência e intensidade de tiques, vaguear pelo espaço sem um objetivo) será o primeiro passo para a sua descodificação. Após esta consciencialização, será mais fácil partilhar verbalmente a sua origem ou permitir que o outro o faça. Manter o contacto com o exterior, via plataformas digitais, poderá diminuir a sensação de solidão, pela partilha de afetos, mesmo que estejamos distantes fisicamente. Planear o futuro, após o término desta fase, mesmo que ainda sem previsão de data, alimentará a esperança do que ainda está por vir, permitindo ainda uma maior segurança com a sua estruturação.

É importante reconhecer a imprevisibilidade do momento em que nos encontramos e saber identificar e refletir sinais de alterações de comportamento, pedindo ajuda, caso necessário. 

Dra. Ana Calado – Psicomotricista
Dra. Inês Silva – Terapeuta Ocupacional

 

Referências Bibliográficas:

 

(1)Sánchez P. A., Martinez M. R., Peñalver, I. V. A Psicomotricidade na Educação Infantil: Uma prática preventiva e educativa. Porto Alegre: Artmed; 2003.

 

(2)Costa J. Um Olhar para a Criança. Psicomotricidade Relacional. Lisboa: Trilhos Editora; 2008.

 

(3) Hanscom A. J. Descalços e Felizes. Lisboa: Livros horizonte; 2018.

 

(4) Biel L, Pesque N. K. Raising a Sensory Smart Child: The Definitive Handbook for Helping Your Child with Sensory Processing Issues. Nova Iorque: Penguin Books; 2009.

 

(5) Ayres J.A. Sensory Integration and The Child. Los Angeles: Western Phychological Services; 2000.

 

(6) Martins R. A Relaxação Psicoterapêutica no Contexto da Saúde Mental – O Corpo como Ponte entre a Emoção e a Razão. In Fonseca V, Martins, R. (Eds). Progressos em Psicomotricidade. Lisboa: Edições FMH; 2001. p. 95-108.

 

(7) Eckert H. Comportamento Motor na Fase Precoce da Infância. In Eckert H, editor. Desenvolvimento Motor. São Paulo: Editora Manole; 1993. p. 183-232.

 

(8) IAVE. Resultados Nacionais das Provas de Aferição, 2018 [Internet]. Lisboa: Instituto de Avaliação Educativa; 2020 [cited 2020 Abr 01]. Available from:  http://iave.pt/images/FicheirosPDF/Docs_Avalia%C3%A7%C3%A3o_Alunos/Relat%C3%B3rios/Informacao_Resultados_PA2018_16jan.pdf.

 

(9) Aucouturier B. Dificuldade do Comportamento e Aprendizagem: a pedagogia da escuta e a prática psicomotora para o acompanhamento do crescimento da criança. Lisboa: Coisas de Ler Edições e Trilhos Editora; 2010.

 

(10) Maximiano J. Psicomotricidade e relaxação em psiquiatria. Rev Psilogos. 2004; 1(1): 85 – 95.

 

(11) Oliveira R. A. O sujeito e o corpo perante a incapacidade física. RPP. 2004; 6(1): 63 – 67.