Desmistificar alguns pensamentos sobre a Perturbação da Fluência

 

A gaguez e a taquifémia são Perturbações da Fluência, que comprometem o ritmo e a velocidade do discurso. A comunicação das crianças, dos jovens e dos adultos, com estas características, pode ser condicionada, perante parceiros comunicativos que não têm conhecimento científico sobre estas patologias.

A gaguez é uma perturbação involuntária, demarcada pela ocorrência de disfluências, nomeadamente repetição de sons (e-e-eu), sílabas (re-re-rena), palavras (Eu, eu vou comer) e/ou frases (Eu vou comer, eu vou comer peixe). Pode-se verificar também a ocorrência de prolongamentos de sons (jjjjanela) e/ou bloqueios, ou seja, silêncios que podem ou não ser percecionados durante 1 segundo ou mais (ex.: choc…colate).

As disfluências podem ser acompanhadas por comportamentos associados, especificamente tensão física, movimentos corporais e/ou evitamento (de sons, palavras e/ou do convívio social).

Todas as pessoas produzem disfluências, consideradas como “não gagas” que ocorrem no discurso e que não são patológicas, designadamente hesitações, pausas silenciosas, interjeições (ex.: ahh, hmm), repetição de palavras e frases. Importa esclarecer que se considera como disfluências típicas de gaguez, broken-words (ex.: ca.ve) e repetição de sons/sílabas, prolongamentos e bloqueios.1

Em Portugal, estima-se que existem cerca de 100 mil pessoas com gaguez. A prevalência da gaguez em crianças em idade escolar é equivalente a 1%, enquanto que em idade pré-escolar é de 2%.2

A taquifémia afeta significativamente a inteligibilidade do discurso de pessoas que apresentam um débito verbal alto (velocidade de fala rápida). Nesta perturbação, é evidente a ocorrência de disfluências, nomeadamente revisões de frase, produção de interjeições e/ou pausas inesperadas que alteram a gramaticalidade das frases, p.e. “Eu vou ao (…) supermercado e comprar maçãs”.1

Uma vez que as perturbações da fluência podem afetar a comunicação com parceiros comunicativos poucos informados, surge a necessidade de desmistificar alguns pensamentos.

 

Mitos vs evidência científica

 

O susto é a principal causa da gaguez! No que respeita à fisiopatologia da gaguez, ainda não existe um consenso. Não obstante, estudos de neuroimagem demonstraram que existem diferenças na anatomia e funcionalidade cerebral em crianças que gaguejam, quando comparada a fluência do discurso em crianças que não gaguejam. As alterações encontradas incidiam em regiões auditivas, motoras e nos gânglios da base. Tais alterações podem aumentar, no decorrer do tempo, em pessoas que têm Perturbação da Fluência. O mesmo estudo, sugere que adultos com gaguez denotam uma atividade elevada no cérebro, especificamente no hemisfério direito e instabilidade na coordenação das áreas, responsáveis pelo planeamento e execução da fala. Contudo, não existe evidência científica que corrobore exclusivamente que as diferenças anatómicas e funcionais sejam as principais causas da gaguez.

Acrescenta-se que existem estudos que comprovaram que parentes do sexo masculino, enfrentam um risco maior para apresentar manifestações de gaguez3, concluindo-se assim que a hereditariedade também é um dos principais fatores de risco. A gaguez advém da interação de vários fatores, nomeadamente genéticos e neurofisiológicos que podem contribuir para o seu aparecimento.1

 

Se eu pedir para ela(e) gaguejar de propósito, a gaguez vai aumentar!. Esta afirmação não é verdadeira. O Terapeuta da Fala, ao solicitar que a criança identifique os diferentes tipos de gaguez ou que gagueje, enquanto produz uma palavra de diferentes formas, não incita o agravamento da gaguez (ex.: chhhave, cha-cha-chave ou ch…chave). Esta tarefa segue os princípios de uma abordagem terapêutica (Stuttering Modification), que visa a identificação e produção voluntária dos diferentes tipos de disfluências, com o fim de promover a dessensibilização da gaguez. Este procedimento é adequado, e como tal, respeita o código ético e deontológico do Terapeuta da Fala (a nível nacional e internacional).

 

Ele(a) gagueja, porque é nervoso, não pensa nem respira antes de falar. As variações identificadas na gaguez são idiossincráticas, podendo ser influenciadas, por exemplo por um contexto familiar que exige que a pessoa seja fluente, aumentando assim a pressão para falar e comunicar melhor. A pessoa com gaguez reage de forma diferente a estímulos diferentes, em momentos e situações também diferentes. Com isto pretende-se dizer que a gaguez é flutuante e que tem impacto sobre os pensamentos, as perceções, os sentimentos e as atitudes do indivíduo em relação às experiências comunicativas (positivas e/ou negativas) com que se depara. Por conseguinte, as interações entre estes fatores provocam impacto direto na frequência, no tipo e na duração da gaguez.4

Parceiros comunicativos pouco informados, tendem a afirmar que a etiologia da gaguez é emocional ou que é influenciada pelo(a) stress, ansiedade, temperamento e dinâmica familiar, o que não é verdade. As reações emocionais e os comportamentos de evitamento, surgem após a manifestação ou instalação da gaguez, visto que o indivíduo em questão sente dificuldades para lidar com as disfluências e tudo que surge associado a ela.1

Alguns estudos indicam que a gaguez pode ocorrer em simultâneo com Atrasos/Perturbação Fonológica, como também por Perturbação da linguagem. De acordo com alguns autores a gaguez pode ser mais frequente, quando o indivíduo realiza tarefas de evocação e apresenta dificuldades articulatórias ou sintáticas (regras que envolvem a organização das palavras na frase).

Pessoas que gaguejam podem ter pensamentos, sentimentos, atitudes e reações positivas, em relação à sua própria gaguez, mas podem ter um desempenho abaixo da norma, no que respeita à capacidade para gerir ou controlar processos motores inerente à fala para conseguir manter a fluência do discurso.4

Quando se observa o aumento da frequência de disfluências na oralidade ou na leitura, é fundamental realizar uma avaliação em Terapia da Fala1. A articulação entre o Terapeuta da Fala e outros técnicos que acompanham o utente é indispensável para que se possa trabalhar competências pragmáticas que visam melhorar a comunicação (em contexto familiar, profissional e/ou social), evitando assim o isolamento social e incentivando a participação e inclusão.4

 
Dra. Juzidmara Pontes – Terapeuta da Fala

 

Referências bibliográficas

  1. American Speech-Language-Hearing Association [Internet]. Estados Unidos da América; s. d. [cited 2020 outubro 19]. Available from: https://www.asha.org/practice-portal/clinical-topics/childhood-fluency-disorders/
  2. Valente A, Avaliação de crianças com disfluência [master’s thesis on the Internet]. Aveiro (Portugal): Universidade de Aveiro, Secção Autónoma de Ciências da Saúde; 2009 [cited 2020 outubro 19]. Available from: http://sweet.ua.pt/lmtj/lmtj/valente2008_2009/valente2009.pdf
  3. Perez, H. Stuttering: Clinical and research update. 2016 junho 1 [cited 2020 outubro 19]; 478. Available from http://europepmc.org/article/PMC/4907555
  4. Healey, E, Trautman, L, Susca, M. Clinical Applications of a Multidimensional Approach for the Assessment and Treatment of Stuttering [Internet]. 2004; 41-43. Available from https://pubs.asha.org/doi/pdf/10.1044/cicsd_31_S_40