saúde mental infantil

SAÚDE MENTAL INFANTIL: A TÉCNICA E O TÉCNICO

 

ASSINALAMOS, A 10 DE OUTUBRO, O DIA INTERNACIONAL DA SAÚDE MENTAL.

Matéria incontornável dos organismos mundiais atuais – Organização das Nações Unidas, Federação Mundial da Saúde Mental, Organização Mundial da Saúde, Direcção-Geral da Saúde, em território nacional – reveste-se da maior importância o debate e a reflexão a respeito de uma matéria que tanto fala acerca do estado de cada país, dos cidadãos do mundo atual. Na verdade, a dicotomia saudável/patológico nunca esteve mais na ordem do dia, senão vejamos a entrada da gíria clínica nas conversas quotidianas, a oferta de saberes e de práticas do saber-fazer (ser pai, ser estudante, ser um profissional de excelência, ser feliz), tão diversas e próximas como nunca. A divulgação de classificações diagnósticas, artigos e manuais, ou a disponibilidade de informação que nos chega por diversas vias e que faz de nós todos um pouco mais entendidos ou pelo menos parte de uma discussão que, diríamos chegou, de uma forma ou de outra, a todas as famílias. Parece-nos que nunca a norma – o normal – foi tão debatida, esbatida e paradoxalmente afunilada em prol de racionais provenientes do politicamente correto (senão vejamos os movimentos de alteração conservadora dos tradicionais contos de fadas).

 

DIRÍAMOS QUE A SAÚDE MENTAL CONSTRÓI-SE A PARTIR DA INFÂNCIA MAIS PRECOCE. UMA BOA CONSTRUÇÃO DA SAÚDE MENTAL PRECOCE CONDUZ A UMA BOA SAÚDE ESCOLAR, POSTERIORMENTE A UMA BOA SAÚDE SOCIAL, MAIS TARDE A UMA BOA SAÚDE PROFISSIONAL E, AINDA, A UMA BOA SAÚDE DE CIDADANIA LIGADA A UMA BOA SAÚDE CULTURAL.

No que concerne aos nossos cidadãos em potência, as perturbações de saúde mental na infância têm repercussões graves não só sobre as próprias crianças como sobre as suas famílias, muitas vezes elas próprias enfrentando dificuldades de diversa ordem, o que inevitavelmente tem repercussões ao nível da estrutura social envolvente (escola, por exemplo), ao ser atingida pelas perturbações mentais dos seus elementos – consideramos clara a correlação bilateral entre estrutura social e psicopatologia, dada a evolução a que assistimos em termos das prevalência e epidemiologia das várias formas de mal-estar psicológico e os seus fatores etiopatogénicos.

Por este motivo, caracterizando especificamente o âmbito de atuação e o campo de intervenção em saúde mental infantil, parece-nos que o técnico que nesta área trabalhe deverá, num exercício de grande parcimónia e sensibilidade:

  1. compreender a dinâmica das vivências internas da criança ou do jovem, isto é, do modo como se organiza face à realidade;
  2. valorizar o papel fundamental das redes relacionais, intra e extra-familiares na promoção do desenvolvimento e da saúde mental da criança e do jovem;
  3. utilizar métodos específicos de abordagem clínica (sublinhamos a relação empática entre o clínico, o paciente e a sua família, a observação/avaliação/intervenção não só junto da criança mas também dos agentes da sua realidade, parte integrante do processo).

Destacamos o trabalho inserido numa equipa multidisciplinar como sendo de importância preponderante, sendo particularmente útil se consideramos a multifatorialidade etiopatogénica das perturbações psíquicas e a dimensão ecológica da saúde mental. O corolário deste processo encontra-se sempre, e a todo o momento, no seguinte tópico: as etapas de avaliação e observação clínica da criança/jovem e respetiva família não podem nunca ser separadas da etapa de intervenção terapêutica, devendo, antes, decorrer a par e passo, no pressuposto de avaliar para intervir. Por seu lado, esta intervenção terapêutica não pode jamais excluir todos os agentes que com esta criança têm contacto – na primeira linha as estruturas de ensino, sempre.

Posto isto, devemos ter sempre presente que não é a criança que nos consulta. Esta é trazida pelos pais ou é encaminhada por outro técnico, professor, instituição, e muitas das vezes desconhece o motivo da consulta. O técnico de saúde mental deve estar preparado para receber uma família, admitindo à priori que no momento da consulta estão presentes sempre quatro pessoas – física ou representacionalmente -, o técnico, a criança, e os seus pais ou cuidadores.

A este propósito Celeste Malpique (1999) diz-nos:

“Os pais vêm até nós para nos pedir algo. É necessário em primeiro lugar compreender o que eles nos querem dizer e o que nos pedem. Eles têm as suas ideias, as suas preocupações, o seu diagnóstico e, possivelmente, têm já uma solução em mente para os seus problemas. Nós não podemos impor-lhes os nossos preconceitos científicos, nem esquecer o enorme esforço que representa da sua parte a sua presença perante nós.”

Por isso mesmo, a possibilidade de intervir na infância maravilha, sendo a fase na qual é percetível de forma evidente a grande maleabilidade do aparelho psíquico e do potencial de transformação que oferece – cada pequena e cirúrgica alteração é impactante no desenvolvimento infantil – e que, concomitantemente, sentimos, como profissionais maior possibilidade de fazer a diferença no aqui e agora do pequeno grande mundo de cada ser com que nos cruzamos.

A intervenção na infância fascina e entusiasma, também porque testemunhamos diariamente a enorme capacidade de (sobre)viver na adversidade que encontramos na criança, aquilo que muitos denominam de resiliência, mas que é, também, fruto da utilização possível dos recursos que cada um (ainda/já) dispõe.

A consulta de saúde mental na infância parece-nos, pois, de importância nuclear para a saúde mental de uma cultura, já que falamos do devir, da matriz social na qual nos inscrevemos e se inscrevem as múltiplas maneiras de abordar a natureza humana e as suas formas de estar. Trata-se de uma forma consciente e sensata de profilaxia social. Urge humanizar mais os serviços, disponibilizá-los de uma forma profissional, mas não menos próxima, e estabelecer o foco de intervenção na dimensão relacional. Afinal, “a tónica da ação é colocada na problemática relacional pois todas as doenças mentais são doenças de relação, isto é, perturbações da forma de estabelecer relações com os outros” (Matos, 1969/2007).

DRA. ANA VERÍSSIMO – PSICÓLOGA CLÍNICA