Venha para dentro, e deixe o medo lá fora.

Mude, mas comece devagar, porque a direção é mais importante que a velocidade.

Clarice Lispector

Clarice, que era escritora e jornalista e não profissional de saúde mental, fala-nos, com tamanha ressonância e a propriedade de uma entendida, de ser pessoa entre pessoas. O que Clarice não previa, nesta frase, é que por vezes a mudança não espera, dá-se de repente, sem aviso nem plano-poupança-felicidade e não nos dá muito tempo para a prepararmos ou nos prepararmos para ela. E este momento que vivemos parece ser uma dessas situações, sem agenda nem marcação, aquelas que apelam em nós uma série de conceitos que desejamos poderem ser mais do que isso – resiliência, assertividade, cooperação, paciência, tolerância, confiança e criatividade.

E aplicar estes conceitos e a sua operacionalização ao que de mais natural poderemos ter e ser: família? Família é sistema, vivo e dinâmico, interativo e interdependente do contexto à sua volta. Se o sistema social muda, é inevitável que o sistema familiar também se mova e inquiete; a realidade externa assim o exige e necessita.

Quer as situações de isolamento quer de intenso e constante convívio intrafamiliar comportam a possibilidade de grandes alterações na dinâmica familiar e a necessidade de um ajustamento individual e coletivo. Emergem sentimentos que tendemos a considerar negativos, como a solidão, a tristeza, a confusão, a zanga, a ansiedade ou o medo, mas que são reflexo deste movimento pró-equilibro e adaptação a uma nova condição. De igual forma, os esqueletos que as famílias guardavam nos seus armários parecem andar mais à solta, as interações e emoções vividas com mais intensidade, emergentes à flor da pele, dificultando uma resposta mais funcional e eficaz para a família, simultaneamente aceite por todos como satisfatória.

Se as famílias se reinventam a cada grande mudança ambiental – papéis, regras, comunicação, ciclos de vida -, num momento que não prevíramos e que não temos memória histórica para igualar, talvez possa ser importante pensarmo-nos e a este sistema, sem a ingenuidade de dizer que está tudo certo e tudo igual, mas com a possibilidade de perceber esta como uma mudança que, apesar de imediata, pode oferecer-nos algo que não tínhamos como receber antes dela. Sem esquecer a dificuldade, acreditamos que estes momentos de crise e mudança podem, igualmente, constituir-se como desafios e oportunidades.

O mundo está diferente, e parece desarrumado, mas continua a ser um sítio maravilhoso para se viver. E é sobre esta possibilidade que vos queremos falar.

Parece ser um tempo do pensamento e do silêncio – e como pode ser organizador para nós, internamente, e para a vida familiar, estando mais disponíveis e capazes para ouvir o outro. Este ritmo, mais ponderado, ajuda a combater a tendência para viver no imediato, a abrandar a pressa e a impulsividade e a colocar o pensamento entre a emoção e o que fazemos com ela.

O aparecimento de novas formas de estar em relação, de colaborações ou proximidades que passavam como desnecessárias ou tímidas na normalidade de outrora. Sozinhos, procuramos o contacto daqueles de quem não sabíamos ou com quem não falávamos há muito e sabe tão bem. Ouvimos vozes antigas e saboreamos essas memórias.

Também a sós, a possibilidade de termos tempo para levar a cabo os projetos em casa que geralmente protelávamos ou não conseguíamos fazer, para os projetos pessoais e para a (re)descoberta de talentos que não sabíamos ter ou que estavam adormecidos – cozinha, jardinagem, leitura, escrita, música, exercício, arrumação, pintura -, atividades que nos deem prazer, gratificação, bem-estar e sentimento de tranquilidade e utilidade.

Connosco, e com espaço agora, podermos investir profissionalmente em áreas que nos deixam curiosos e que poderão fazer de nós profissionais mais diversificados – procurar, na comunidade eletrónica, cursos, palestras e formações online, muitos deles gratuitos.

Psicologicamente, é possível pensar que este pode ser um tempo de procura de um processo terapêutico, passível de realizar em plataformas online, que permita trabalhar aspetos do funcionamento emocional, sejam reativos à situação atual seja na procura de um trabalho de descoberta interior.

Se em isolamento numa família com mais elementos, neste período, há tanto para descobrir.

Temos a oportunidade de nos conhecermos melhor, quer individualmente, quer enquanto grupo familiar. Ouvindo todos e especialmente os mais antigos, podemos acrescentar ou construir a memória coletiva da família, explorando a sua história, vicissitudes e conquistas, pesquisar a genealogia, explorar recursos que já utilizámos outrora face a situações de adversidade, fazer o brasão, o hino ou a bandeira da família, entre outras atividades que nos levem a fortalecer laços e a fomentar o sentimento de identificação e pertença às nossas famílias, como uma forma de olhar para dentro de nós e para dentro do outro.

Aproveitar as conversas que surgem espontaneamente, em locais da casa e do dia inusitados e sobre assuntos diferentes, que têm significados diversos para cada um, na sua idade e experiência, mas que dão a todos, por igual.

É possível pensar as outras famílias e olhá-las com empatia e respeito, com a consciência das nossas diferenças e similitudes, para dentro e para fora da família. Especialmente nesta fase, poder pensar a família como um lugar seguro a que é bom retornar, mas que não é assim para todos (e como será para alguns e como poderemos ajudar?), e que temos de estar mais próximos, que a solidariedade nos protege e que a cooperação ganha, não a competição.

A casa passa a ter várias caras: pode ser lar, escola, museu, biblioteca, sala de espetáculos, cinema ou um barco em aventuras diárias, um estúdio de pintura, um ginásio ou um quartel dos bombeiros. Afinal, a necessidade e a criatividade dão um sítio e o tempo para a nossa imaginação existir, por vezes fazendo o que nunca experimentámos. Porque nos desafiamos.

A agenda parece ganhar consciência do importante e do supérfluo – e ter disponibilidade para ambos. Temos tempo para estar sem tempo e para estar próximo – connosco, com um cônjuge, com os pais, com as crianças. Tempo que geralmente anda escondido e a fugir de nós. Tempo para ver os vídeos de família gravados lá longe, para os puzzles empoeirados, para a receita escrita no velho livro e aquela gaveta que precisava de ser pintada. Como pais, poder estar junto e perceber quem são os colegas – e para os miúdos dar um rosto aos colegas dos pais trabalhadores -, as séries poderem ser vistas em conjunto e pensadas, o que é que significa para eles aquela música e o que é que ambos podem pescar nas redes sociais.

Olhamo-nos mais e melhor – em famílias maiores, podemos ver cada um com saudades de o encontrar, ouvir cada criança, conhecer cada tormenta, considerar cada pensamento não falado e construir soluções juntos. Numa área partilhada, desafiarmo-nos a encontrar os graus de liberdade individual, comunicando – pessoas distintas, com idades desiguais, têm necessidades diferentes (o adolescente a sentir a casa claustrofóbica, as crianças fazendo de pequenos heróis com energia demais quais homens-aranha através do mobiliário entediado, idosos em dilema entre teimar viver ou teimar na liberdade, o casal a encontrar-se nas esquinas de uma sopa). Comunicar impõe-se como regra de ouro, feita de forma escolarizada, porque arrumada de forma clara, tranquila e pragmática, a respeito das rotinas, e, portanto, mais funcional, ou sobre a forma como cada um está a experienciar este momento, permitindo investir na relação e, ao mesmo tempo, prevenir ou resolver conflitos.

Com os dias reinventados, a rotina pode ser mais participada, porque vivida com mais calma e organizada, e todos podem ganhar competências, que aprendem uns com os outros (a cozinhar, a jogar aquele jogo, a separar a roupa para lavar, a arranjar uma cadeira e a pintar uma moldura, a tocar na guitarra do pai e a coser aquelas calças). Com esta interdependência, podemos trabalhar a autonomia de cada um.

As coisas simples e despretensiosas passam a ter um sabor diferente e ganham uma inflação que vem do brilho da sua genuinidade e do bem que fazem. Coisas que fazemos por nós, e a bem da nossa sanidade, que podem ser postas ao serviço do outro. Mesmo estando mais iguais e nivelados entre nós, porque o que vivemos nos atinge a todos, descobrimos que algo em que somos bons pode transformar o dia de outras pessoas; é gratuito e natural e é alegria fácil de alguém.

Por último, parece que finalmente temos tempo para cuidarmos dos outros, e que não necessariamente os de casa, e para nos preocuparmos mais com eles (família alargada, vizinhos ou amigos), o que parece um luxo, e não deveria ser!

Olhamos, agora, para o calendário de maneira diferente, levando um momento, um dia, ou uma semana, de cada vez. É o ritmo da nossa energia e da nossa fé e da confiança que estamos todos a melhorar, de maneiras diferentes. Só a derrota não pode ganhar. Quando regressarmos, saberemos que aproveitámos esta situação da melhor forma possível, para nós, para a nossa família e se possível para aqueles a quem chegámos. Sabemos, também, que estaremos diferentes, e porventura mais conhecedores de nós próprios – e das nossas pessoas. É bom que os tempos que venham não mudem isso.

Dra. Ana Veríssimo – Psicóloga Clínica
Dr. Pedro Fernandes – Psicólogo Clínico