Música em Terapia ou Música como Terapia (Musicoterapia)?

Desenvolvimento do sistema auditivo – da gravidez à infância 

O desenvolvimento auditivo inicia-se na gravidez. No feto e no bebé envolve as partes estruturais das orelhas, que se desenvolvem nas primeiras 20 semanas de gestação, sendo que a parte neurossensorial do sistema auditivo se desenvolve, principalmente, após as 20 semanas de idade gestacional. O sistema auditivo torna-se funcional por volta das 25 semanas de gestação e sabe-se que a cóclea (ouvido médio) e o córtex auditivo (lobo temporal) são as estruturas mais importantes no desenvolvimento do sistema auditivo. O período que ocorre entre as 25 semanas de gestação e os 5/6 meses de idade é o mais crítico para o desenvolvimento da parte neurossensorial do sistema auditivo, pois é neste momento que as células ciliadas da cóclea (ouvido interno), os axónios do nervo auditivo e os neurónios do córtex auditivo do lobo temporal são sintonizados para receber sinais de frequências e intensidades específicas. Ao contrário do sistema visual, o sistema auditivo requer estimulação auditiva externa para se desenvolver. Por isto, a maturação do sistema auditivo é mais morosa e prolonga-se até à infância tardia. Este curso prolongado do desenvolvimento do córtex auditivo, provavelmente, reflete tanto sua complexidade anatómica, quanto seu papel no processo de aquisição da linguagem.

Desenvolvimento do sistema auditivo

Sistema auditivo, um sistema sensorial: relação entre o sistema auditivo e integração sensorial

A integração sensorial é o processo neurológico pelo qual todos os estímulos sensoriais do meio são integrados no cérebro de forma a conseguirmos interagir com o ambiente de forma adaptativa, e a informação auditiva não é exceção, mas sim parte integrante deste processo. Este facto prende-se com a relação intrínseca entre o sistema auditivo, os outros sistemas sensoriais, como o tátil e o propriocetivo, e ainda com a relação destes na autorregulação emocional, ou seja, o som, as emoções e as ações têm uma ligação direta, o que resulta na variação do nosso estado de alerta, atividade e humor. Um exemplo das relações entre os sistemas sensoriais é o facto de quando ouvimos uma música mais agitada nos apetecer dançar e, por outro lado, quando ouvimos uma música de embalar apetece-nos dormir e relaxar. Este facto pode ser utilizado para potenciar o desenvolvimento normal da criança, e estimular a criança em diversas vertentes. Por exemplo, a regulação dos estados de alerta (calma vs. agitação), assim como o movimento corporal, podem ser organizados e potenciados pelo ritmo e intensidade da música. A integração dos estímulos auditivos, a sua perceção e discriminação permitem-nos ainda estar alerta e interagir com o que nos rodeia, como por exemplo, responder quando nos chamam. A referida capacidade pode também proteger-nos de eventuais perigos, como por exemplo quando um carro apita.

relação: sistema auditivo, sistema sensorial

Sistema Auditivo e Comunicação: Relação entre o sistema auditivo e o desenvolvimento da comunicação e da linguagem

O funcionamento normotípico do sistema auditivo é fundamental para o desenvolvimento do bebé, revelando-se essencial para a sua adaptação social e desenvolvimento intelectual. Os primeiros anos de vida são considerados os mais importantes para o desenvolvimento das capacidades auditivas e de linguagem oral, uma vez que correspondem ao período de maturação do sistema neuronal, no qual ocorre maior crescimento do cérebro e estabelecimento de novas sinapses neuronais.

O desenvolvimento da linguagem, quer ao nível da compreensão quer ao nível da expressão, depende da integridade do sistema auditivo. Considerando que o sistema auditivo não apresenta alterações, o desenvolvimento da linguagem inicia no momento do nascimento do bebé.

A ocorrência de uma perda auditiva significativa pode resultar em alterações graves no desenvolvimento da criança, tais como atrasos no desenvolvimento da linguagem e da cognição. Na presença de perda auditiva significativa, o sistema de símbolos que utilizamos tradicionalmente para desenvolver e expressar verbalmente os nossos pensamentos e ideias não é automaticamente compreendido e aprendido.

sistema auditivo e o desenvolvimento da comunicação e da linguagem

Terapia da Fala e Terapia Ocupacional – a utilização da música como recurso

Tendo o sistema auditivo um papel tão relevante no desenvolvimento de tantas competências da criança, nomeadamente nas competências de relação e interação, comunicativas, emocionais e regulatórias, a música, na intervenção terapêutica com crianças, torna-se numa ferramenta fundamental. Em primeira instância, é utilizada como uma forma de estabelecimento da relação com a criança, aumentando a motivação para a interação e participação no brincar. Posteriormente, pode também ser um recurso auxiliar no desenvolvimento de competências comunicativas e sensoriomotoras.

Na Terapia da Fala, o recurso a instrumentos musicais e/ou canções (ouvidas pelo terapeuta e pela criança ou cantadas pelo terapeuta) auxilia e promove o desenvolvimento das competências de comunicação pré-verbais (p.e. reagir à presença do outro e à sua voz (falada ou cantada); dirigir o olhar e a atenção para o parceiro comunicativo ou para o material utilizado; estabelecer e manter contacto ocular; ser capaz de alternar o olhar entre o parceiro comunicativo e o instrumento musical (ou outro objeto); manter a atenção conjunta; realizar troca de turnos; iniciar a comunicação; solicitar auxílio; etc.). 

Na Terapia Ocupacional é especialmente importante pelo seu papel regulador, podendo ser uma fonte de motivação para a participação no brincar e/ou nas atividades académicas, as ocupações mais significativas na criança. Como referido anteriormente, o sistema auditivo é parte integrante do processo de integração sensorial, sendo este sistema desenvolvido e utilizado como recurso para o desenvolvimento sensoriomotor da criança. Através da música e de sons com diferentes ritmos e melodias conseguimos diferentes estados de alerta, desempenhando, assim, a estimulação auditiva um papel ativo na modulação auditiva e, do mesmo modo, tem impacto nos outros sistemas sensoriais provocando maior ou menor intensidade de movimento, de acordo com o que a criança precisa. Todas as problemáticas do desenvolvimento beneficiam da introdução da música como meio terapêutico, no entanto, quando existem alterações do processamento sensorial, alterações regulatórias ou quando não existe comunicação verbal, nomeadamente nas Perturbações do Espetro do Autismo, é um recurso obrigatório.

Música como recurso terapêutico

Música em terapia e a Música como terapia: a diferença 

Música em Terapia – a música tem propriedades específicas a que se recorre para melhorar os efeitos da relação terapêutica ou dos objetivos da terapia – neste caso, o foco está na relação e nos objetivos específicos que devem ser alvo de intervenção, e não na música, sendo esta um “material” utilizado.

 

DIFERENTE

Música como Terapia (Musicoterapia)a música é o primeiro meio, é o foco e o agente terapêutico para se promover a mudança

A Musicoterapia “é a utilização profissional da música e dos seus elementos para a intervenção em ambientes médicos, educacionais e no quotidiano, com indivíduos, grupos, famílias ou comunidades que procuram otimizar a sua qualidade de vida e melhorar suas condições físicas, sociais, comunicativas, emocionais, intelectuais, espirituais, e saúde e bem-estar” (F.M.M, 2011). Trata-se de um processo interpessoal, artístico, criativo e científico. A experiência musical envolve processos neurofisiológicos, psicoafetivos e cognitivos, que influenciam o funcionamento do cérebro e os processos que ele regula, ou seja, estimula e promove mudanças, nomeadamente: aumenta o cerebelo; o corpo caloso fica com fluidos e ativa-se o córtex auditivo e o motor. A música afeta um indivíduo de forma integrada e a resposta que este dá a um estímulo sonoro é de forma global. 

Desta forma, embora possam ser complementares e possam ser utilizadas como recurso conjunto, são bem distintas, tendo que, em cada caso, se avaliar a necessidade da intervenção especifica em Musicoterapia ou noutras terapias, que utilizem a música como recurso terapêutico.

AUTORAS:

Dra. Leila Charrua – Terapeuta da Fala

Dra. Maria Assis – Terapeuta Ocupacional

Bibliografia:

  • Chang, M.C.; Parham, L.D.; Blanche, E.I.; Schell, A.; Chou, C.P.; Dawson, M.; Clark, F. Autonomic and behavioral responses of children with autism to auditory stimuli. Am. J. Occup. Ther. 2012, 66, 567–576. 
  • Graven, S. N., & Browne, J. v. (2008). Auditory Development in the Fetus and Infant. Newborn and Infant Nursing Reviews, 8(4), 187–193. https://doi.org/10.1053/j.nainr.2008.10.010
  • Lane, S. J., Mailloux, Z., Schoen, S., Bundy, A., May-Benson, T. A., Parham, L. D., Roley, S. S., & Schaaf, R. C. (2019). Neural foundations of ayres sensory integration®. Brain Sciences, 9(7). https://doi.org/10.3390/brainsci9070153
  • Moore, J. K., & Linthicum, F. H. (2007). The human auditory system: A timeline of development. In International Journal of Audiology (Vol. 46, Issue 9, pp. 460–478). https://doi.org/10.1080/14992020701383019

 

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