Hoje, dia 10 de Outubro de 2022, assinala-se o Dia Mundial da Saúde Mental – desta feita, 30 anos decorridos desde o início das comemorações. A criação desta data partiu da iniciativa da Federação Mundial da Saúde Mental, por determinação do então Secretário-Geral, Richard Hunter. O Dia Mundial da Saúde Mental foi pela primeira vez celebrado no ano de 1992, com o objetivo de promover uma oportunidade anual para aumentar o conhecimento público sobre este tema. Atualmente, a Organização Mundial de Saúde reconhece e assinala também este dia, assim como muitos organismos e instituições em todo o mundo.

Pensando no percurso que a humanidade tem realizado nestes últimos trinta anos, será esta data (e o conceito que pretende divulgar) mais premente hoje do que outrora, aquando da sua criação? Como estava a humanidade há trinta anos, na aurora – tardia? – que a despertou para a urgência de se falar da outra vida, a interna, a psíquica, a invisível, que reside, mas ultrapassa a barreira do nosso corpo? E porque se tornou hoje este tema tão emergente, aparentemente como nunca? O que sabemos é que a temática da saúde mental se tornou tão relevante que a sua gíria entrou no vocabulário comum, desde o jornalístico ao político, certamente com a vantagem de se tornarem palavras e expressões conhecidas, acessíveis e manuseáveis, e a desvantagem da sua utilização ser imprecisa e até abusiva. De uma forma ou de outra acreditamos que este trazer a saúde mental para a linguagem comum, para o pensamento e para a vida quotidiana das pessoas é, sem dúvida, uma mais valia e, nesse sentido, pensamos que a missão original ligada à criação desta data está cumprida – quer pelos esforços dos seus intervenientes, quer pela contemporaneidade desta temática e a sua proximidade às nossas vidas.

É difícil compreender algo invisível

Ao longo destes 30 anos temos assistido a uma progressiva predisposição para se poder cada vez mais falar de saúde e de doença mental. Podemos pensar o porquê desta facilitação, se por razões estatísticas – os números são claros no aumento dos diagnósticos, no aumento dos pedidos de ajuda, no aumento de prescrição de medicação psiquiátrica, no aumento de relatos de mal-estar psicológico – se por proximidade relacional ou emocional a alguém que conhecemos que “não está bem”, pela frequência com que figuras públicas falam das suas dificuldades relativas a esta área das suas vidas, porque existem mais profissionais de saúde mental ou porque a narrativa social está mais povoada desta temática, desde livros a notícias ou artigos, mais presente nas redes sociais. Quiçá, como em grande parte dos fenómenos, seja por todas estas razões em simultâneo e outras que o leitor poderá identificar.

E do que falamos quando falamos de saúde mental? De acordo com a Organização Mundial de Saúde, saúde mental é um estado de bem-estar no qual o indivíduo é capaz de usar as suas próprias habilidades, recuperar-se das fontes de stress próprias da rotina, ser produtivo e contribuir para o contexto no qual está inserido. Neste sentido, parece tratar-se de “um conceito complexo, produto de interações múltiplas, incluindo fatores biológicos, psicológicos e sociais”, sendo ainda “influenciado por diferenças culturais e pela subjetividade de cada um” (Dr.ª Maria João Heitor, Psiquiatra). Como percebemos, estas definições alongam-se para lá do conceito de doença mental, não sendo, necessariamente, antónimos. A saúde mental implica muito mais do que a ausência de doença mental – diz respeito a este estado global de bem-estar, de avaliação positiva relativamente à sua vida, com ajustamento social, com competência ocupacional e autodeterminação. 

Ainda assim, parece que este é um conceito que navega entre aspetos visíveis e outros menos percetíveis externamente. Se o ajustamento social e a participação relacional parecem ser indicadores observáveis, a avaliação subjetiva que cada um faz da sua vivência e o modo como esta o faz sentir nem sempre é passível de ser verificada através do olhar externo, e, diríamos, até do interno, necessitando da disponibilidade do próprio e de outras condições psicológicas, para se conhecer. Daí que muitas vezes nos sintamos surpresos ao tomar conhecimento de que alguém próximo afinal não está assim tão bem, tão feliz, tão satisfeito com a sua vida ou gratificado com as suas experiências. Só recentemente, parece-nos, é que falar do sentir, da vida emocional que povoa a nossa existência, e se mescla em tudo o que somos e fazemos, passou a ser mais comum. Isto é, a possibilidade de criar espaço, hábito, normalidade para pensar sobre o sentir e depois falar sobre esse sentir, dar-lhe um espaço dentro e fora de nós. E mergulhar num sítio onde por vezes não há luz, perceber a escuridão que encontramos dentro, pode ser uma viagem turbulenta, um assustador exercício de ataque à estabilidade conquistada. 

Neste processo, importa colocar a questão da forma como a saúde e a doença mental são sentidas pelas pessoas, individual e socialmente, as representações mentais e o desconhecimento, a conotação, a vergonha e a culpa – se não diz a alguém com uma perna partida “vá, esforça-te”, porque se dá a alguém num estado depressivo ou ansioso esse conselho? Estas atitudes em relação à saúde e à doença mental parecem um movimento cíclico; por um lado partem do contexto, tendo repercussões no indivíduo, por outro surgem interna e espontaneamente quando, ao ouvi-las continuamente, ressoa a ideia de que há algo de errado em si por estar assim, de que o seu estado é uma questão de motivação ou vontade.

 Por outro lado, importa refletir sobre a ideia de que a face visível da doença mental (o sintoma, a perturbação), por mais que pouco ajustada à realidade externa da pessoa, é um produto da sua luta pela sobrevivência psíquica, ou seja, a mobilização de mecanismos desajustados (social, comportamental ou ocupacionalmente falando) mas que são adaptativos à situação, ao contexto e aos recursos existentes. Neste sentido, perceber o sintoma como o (melhor) resultado possível face à conjugação de circunstâncias, presentes e passadas, e à forma como são percebidas. Cremos que a prevalência ou a disseminação desta premissa possibilita a construção de uma narrativa alternativa e menos pejorativa a respeito da doença mental – a ideia de que a vida psíquica é algo diverso, de tamanha complexidade, com apresentações plurais e múltiplas combinações possíveis. E parece-nos que começam a dar-se pequenos passos neste sentido, sendo exemplo disto a passagem de terminologias como a palavra “normal” para a designação “normativo”, bem como o conceito de “neurodiversidade” aplicado a funcionamentos diferentes da norma no que diz respeito ao perfil neuropsicológico. 

Saúde mental em Portugal

Em Portugal, os cuidados de saúde podem ser prestados nos três níveis considerados na pirâmide de serviços da OMS – cuidados primários, cuidados especializados e cuidados altamente especializados (e.g., cuidados para crianças e adolescentes). Verificou-se, a nível dos cuidados primários, uma grande evolução a partir dos anos 80, nomeadamente no que ao acesso a estes cuidados diz respeito, algo que resultou, na década seguinte, no facto de que a procura destes serviços para dar resposta a questões de saúde mental entre os quatro principais motivos de procura (Caldas de Almeida et al., 2007).

Não podemos descurar, no entanto, o papel dos cuidados informais, através dos quais a população portuguesa encontra os primeiros apoios, quando confrontada com situações de crise que afetam a sua saúde mental e, em muitos casos, são uma rede de suporte importante para lidar com as dificuldades que acompanham diagnósticos já existentes, relativos à saúde mental. Ainda assim, em pessoas nas quais perdura doença mental grave, um número elevado destes doentes continua a depender dos cuidados familiares, ainda que com apoios extremamente reduzidos dos serviços de saúde e sociais. Na ausência dos cuidados informais, as famílias dependem dos cuidados de saúde formais prestados pelos serviços de saúde – serviços públicos, serviços privados e os serviços da área social.ão clínica, a fim de melhorar a saúde pública, através da identificação de melhores estratégias relativas à prevenção e tratamento de perturbações mentais.

Vários vão sendo os estudos que analisam o estado de saúde mental dos portugueses como menos positivo, principalmente quando comparado com o de outros congéneres europeus. De facto, na publicação “A saúde mental dos portugueses” (José Caldas de Almeida, 2018) verificamos indicadores que referem que Portugal apresenta, de forma continuada e consistente, valores muito baixos nas áreas relativas à experiência de sentimentos positivos, à presença de sentimentos de calma e tranquilidade, à ausência de sentimentos negativos, a satisfação com a vida e a sensação de energia-vitalidade. Apresentamos, igualmente, uma das prevalências mais elevadas de perturbações mentais e uma das mais altas taxas de consumo de psicofármacos da Europa. Por outro lado, a equidade no acesso e a qualidade dos serviços de saúde mental continua a ser uma preocupação.

Dados de 2016 refletem que perturbações ansiosas e depressivas representaram, respetivamente, 6,06% e 9,3% das médias da proporção de inscrições nos cuidados de saúde primários nas diferentes regiões do país (DGS, 2017). Mantém-se, porém, que, atualmente, um número ainda significativo de pessoas recorre, através do seu próprio bolso, de seguros como a ADSE ou outros seguros de saúde, a consultas privadas de Psicologia e Psiquiatria. É reconhecido que os problemas de saúde mental trazem custos substanciais a nível individual, comunitário e social – há cerca de 10 anos era relatado que, anualmente, mais de um terço da população europeia apresentava sintomas de perturbação mental. Ainda assim, afirmava-se que menos de um terço de todos os casos recebia algum tratamento, sugerindo um nível considerável de necessidades não atendidas – tendo sido recomendado um aumento substancial do financiamento para investigação clínica, a fim de melhorar a saúde pública, através da identificação de melhores estratégias relativas à prevenção e tratamento de perturbações mentais.

Em Portugal, relata-se, em janeiro de 2022, que os pedidos de ajuda ao Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise (CAPIC) do INEM aumentaram mais de 50% nos mais jovens (pessoas até aos 19 anos de idade) durante os dois primeiros anos de pandemia – 2020, 2021 -, com mais crises de ansiedade e pânico e uma subida nos comportamentos suicidários. É, ainda, relatada uma subida de, aproximadamente, 40% nas ocorrências relativas a comportamentos suicidários, com um número de 3.496 casos no ano de 2020. Para além dos dados referidos, cita-se que “apenas 15% das pessoas com problemas de saúde mental são acompanhadas, sendo o tempo médio de acesso a cuidados especializados de quatro anos”.

O que protege e fragiliza a saúde mental – ou “como me posso agasalhar para o frio não entrar?”

A investigação e a análise estatística trazem-nos informações sobre que aspetos mais podem contribuir, genericamente, para que o sofrimento psicológico se instale de tal forma que impacte negativamente a vida de um indivíduo. Para além daqueles que dizem respeito à história de uma pessoa (pensamos nas situações de trauma diverso, de abuso e de negligência, de pobreza e exclusão social), parece-nos importante abordar os que ocorrem no decurso da sua vida adulta e mesmo de uma forma sociológica, tais como a ocorrência de crises económicas, e o grau de exposição a situações de risco, associado a variáveis prévias de vulnerabilidade, financeira, social ou psicológica.

A este nível, a melhoria da saúde mental passa, também, pela diminuição dos níveis de pobreza e desigualdade, pela melhoria das condições de vida das pessoas, de um ponto de vista individual, mas igualmente social – falamos de políticas de educação, emprego, suporte social, por exemplo, para além dos serviços diretos na área da saúde. Falamos de intervenção, mas também de prevenção, de políticas integradas que abranjam e façam comunicar estas áreas em conjunto. A abordagem a ter, por forma a acompanhar a crescente consciencialização social da população sobre saúde mental e dar resposta às necessidades atuais, será, necessariamente, global, a partir de um trabalho conjunto por parte do governo, sociedades civis e setor privado. A interrupção de ciclos de pobreza, violência, degradação ambiental e perturbações mentais é possível, à semelhança do estabelecimento de ciclos virtuosos de saúde mental e bem-estar emocional.

Importa, por isso, pensar este dia de uma forma individual, interna, sistémica e social, deixando de lado o paradigma da saúde mental como algo estritamente individual e que só ao próprio diz respeito e abraçando com generosidade a convicção de que as suas implicações e ramificações começam e terminam na relação.

Não esquecer: está tudo bem em não estar tudo bem. Neste e em todos os outros dias. 

AUTORES:

Dra. Ana Veríssimo – Psicóloga Clínica

Dr. Tiago Silva – Psicólogo Clínico

0 Comments

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado.